O efeito dominó da revolta em Jirau
Conversei com jornalistas que foram cobrir a situação causada pelos protestos no canteiro de obras da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia. Quase todos foram com uma pauta sobre vandalismo, mas voltaram com um número maior de matérias tratando de graves problemas trabalhistas e de sério desrespeito aos direitos fundamentais. Isso foi percebido pelos leitores/ouvintes/telespectadores que acompanharam o caso com atenção nos últimos dias, a ponto de refletir nas cartas e e-mail recebidos em redações. As primeiras notícias trataram de quebra-quebra, depois começou a aparecer o pano de fundo.
Não estou querendo justificar a destruição da farmácia que atendia os trabalhadores, por exemplo. Mas é impossível entender todo o contexto se não for explicado que a dita atuava praticamente em um esquema de “barracão”, fazendo com que trabalhadores contraíssem dívidas ilegais. Jornalismo tem que tratar de causas e consequências.
Mesmo passando o necessário filtro nos rumores e boatos que correm de um lado para o outro nessas horas quentes, ainda assim o que sobra já dá para arrepiar o cabelo. Denúncias de maus tratos, condições degradantes, violência física. Coisas que acionistas de grandes empresas não gostam de ver exposto por aí e, por isso, são repetidas vezes negadas pelos serviços de relações públicas ao longo de anos.
O que aconteceu em Jirau tem um mérito: escancarou a caixa preta das grandes obras ligadas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), trazendo à tona o que vem sendo alardeado há tempos por movimentos sociais e organizações da sociedade civil: que esses canteiros se tornaram máquinas de moer gente – noves fora os impactos ambientais e nas populações locais.
E olha que não estou nem recorrendo à minha cantilena e falando do caso de trabalho escravo em Jirau em 2009, quando 38 pessoas aliciadas no Maranhão foram resgatados enquanto trabalhavam para a Construtora BS, que prestava serviço ao consórcio responsável pela construção da usina. Mas sim de um processo estrutural causado pela pressa em terminar e gerar energia, pelos cortes de gastos e pela necessidade de manter a lucratividade do empreendimento. Tudo com o apoio de dinheiro público, ou seja, eu, tu, nós.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) afirmou que vai manter os repasses do empréstimo à obra. A descoberta dos problemas questiona os critérios de financiamento da instituição. Pois o começo de tudo não foi uma briga entre operários e motoristas ou problemas com comida e alojamentos. Aquilo era uma complexa bomba-relógio de insatisfação pronta para detonar, com mais pessoas trabalhando que recursos físicos e humanos para mantê-las. O banco não é fiscal, mas também não pode ficar em uma posição de só caixa registradora.
Além dos problemas encontrados pelo Ministério do Trabalho e Emprego ao longo do tempo, os ministérios públicos Federal e Estadual de Rondônia impetraram uma ação civil pública contra o estado, o município de Porto Velho, a União, o Ibama, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Energia Sustentável do Brasil (ESBR, empresa responsável pelas obras), por descumprimento de condicionantes nas áreas de saúde, educação, transporte e segurança. Ou seja, o que não faltava era informação à disposição (por isso mesmo assusta ver algumas matérias que foram ao ar na TV com um grau incrível de desconhecimento da realidade, mostrando que tem gente em redações não sabendo usar nem o Google na pesquisa).
O BNDES deveria ter tido mais cuidado e monitorado isso, lembrando que a bomba soltou vários avisos de fumaça, nos últimos anos, antes de explodir. Se tivesse feito isso, provavelmente estaria suspendendo agora os repasses ou aplicando novos condicionantes. As usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, têm R$ 13,3 bilhões de financiamento do BNDES.
Agora, os responsáveis pelas obras falam na adoção patamares mínimos. O mais engraçado é que esses patamares já existem e se chamam legislação trabalhista. É só seguir o que está lá, sem tirar nem por. Mas, aí, a obra ficaria cara e inviável, não é mesmo?
E tem mais um probleminha aí no meio: a terceirização tresloucada. A quantidade relativa de empregados das empresas diretamente responsáveis por uma grande obra é pequena em comparação aos empregados das subcontratadas. Um consórcio contrata o Tio Patinhas para tocar um serviço, que subcontrata o Mickey, que subcontrata o Pateta, que deixa tudo na mão de três pequenas empreiteiras do Zezinho, do Huguinho e do Luizinho. Às vezes, o Zezinho não tem as mínimas condições de assumir turmas de trabalhadores, mas toca o barco mesmo assim. Aí, sob pressão de prazo e custos, aparecem as bizarrices. Depois, quando tudo acontece, Pateta, Mickey, Tio Patinhas e o consórcio dizem que o problema não é com eles. Ninguém quer pagar o pato – literalmente.
Enquanto isso, muita gente que assiste ao que está acontecendo pela TV fica achando que os trabalhadores que tocaram o terror fizeram isso por prazer. Terror é a situação em que estava um mundaréu de gente, provisoriamente alojada no Sesi de Porto Velho, sob um calor do cão, e com a “escolta” da polícia para que não saíssem e criassem tumulto na cidade. Não é campo de concentração porque não estava a céu aberto.
São bons esses momentos em que a sociedade regurjita sua entranhas, serve para pessoas perceberem que não estão sozinhas, leva ao reconhecimento da própria condição e pode gerar um efeito dominó. O UOL mostrou que protestos ocorreram em outros lugares (Além de Jirau, revolta de operários afeta outras duas grandes obras do PAC). Trouxe aqui que em Estreito (MA), as críticas também subiram o tom.
Imagina se todos esses protestos iniciais levassem a pipocar outros pelo país, em um fenômenos semelhante ao que está acontecendo no mundo árabe?
Vamos levantar os podres que estão por trás do “milagre do crescimento” e ver se ele se sustenta após ter sido colocado ordem na casa. Isso se não jogarem tudo para baixo do tapete em nome da ordem pública e dos financiamentos de campanha. De novo.
Fonte: https://blogdosakamoto.uol.com.br/